Jornalismo em Quadrinhos: os filhos de Joe Sacco
Eis a breve história do Jornalismo em Quadrinhos. Em 1992, quando Art Spiegelman recebeu o prêmio Pulitzer (até então concedido apenas a trabalhos jornalísticos) por sua obra Maus, o livro ficou conhecido como uma das primeiras experiências de reportagem em quadrinhos. Trata-se de um relato autobiográfico sobre como os pais do autor sobreviveram ao Holocausto.
No entanto, foi um jornalista maltês o responsável por dar nome ao que estava surgindo: em meados da década de 1990, com a publicação de Palestina, Joe Sacco criou a expressão “Jornalismo em Quadrinhos” (JQ). Desde então, Sacco continuou desenvolvendo seu trabalho pioneiro, publicando livros-reportagens sobre conflitos na Bósnia e na Faixa de Gaza.
“Joe Sacco é, desde o princípio e até hoje, o ‘super-herói’ da reportagem em quadrinhos”, diz Jens Harder, quadrinista alemão. Segundo ele, Sacco reina solitário como o principal HQ-repórter em atividade, “porque trabalha com muita seriedade e ambição e porque pega pontos centrais da vida social e política e põe sob uma lupa”.
Sacco, porém, não é o único, tampouco o primeiro. Como relata o brasileiro Aristides Dutra, pesquisador do tema: “Em 1988, a editora e roteirista de quadrinhos Joyce Brabner produziu um livro–reportagem em quadrinhos chamado Brought to Light. Como não havia ainda um nome para esse conceito, o livro foi apresentado como um graphic docudrama”. Antes disso, em 1986, O fotógrafo francês Didier Lefèvre passou dois meses no Afeganistão, acompanhando uma expedição da organização Médicos Sem Fronteiras. As fotos feitas por ele originaram mais tarde a obra Ofotógrafo, uma reportagem em quadrinhos publicada no Brasil em três volumes.
Essas são, até hoje, as principais referências. Agora, uma nova geração vem dar continuidade a essa história.
OS NOVOS HQS-REPÓRTERES
“Sempre tive a ideia de fazer quadrinhos de não ficção ou algo mais literário, mas foi só no ano 2000, quando li Palestina, é que me dei por conta do que era possível fazer com os quadrinhos.” O relato é do HQ-repórter Dan Archer. Ele mora na costa oeste dos Estados Unidos, de onde atualiza o site www.archcomix.com. Ali, publica suas reportagens sobre questões políticas e sociais dos Estados Unidos e da América Central.
Outro norte-americano, Matt Bors, começou a trabalhar efetivamente com JQ só em 2010, após uma viagem ao Afeganistão. Foi, porém, amor à primeira vista: “Algumas pessoas trabalham com prosa ou vídeo; minha mídia é o quadrinho. Esse é o modo como penso e como quero criar”, conta. Tudo aconteceu rapidamente para Bors, que hoje é editor do site Cartoon Movement (www.cartoonmovement.com). Junto com outros dois profissionais radicados em Amsterdã, Bors publica na internet trabalhos de HQ-repórteres de diversos países.
Na Alemanha, em 1999, seis estudantes da Faculdade de Artes fundaram o grupo Monogatari. Eles queriam unir forças para desenhar, discutir interesses em comum e também publicar suas obras. Dessa união surgiram dois projetos de JQ. Em 2001, o primeiro: Alltagsspionage, com reportagens sobre Berlim. O livro gerou repercussão e, em 2004, o grupo foi convidado a fazer reportagens na Basileia, na Suíça, dando origem à coletânea Operation Läckerli.
O tempo passou e os integrantes do Monogatari seguiram seus próprios rumos. Um deles, porém, continuou trabalhando com JQ. Em 2005, o Goethe-Institut de Tel Aviv, em Israel, convidou Jens Harder para coordenar um projeto de intercâmbio entre quadrinistas israelenses e alemães. Surgiu daí o livro de reportagens em quadrinhos Cargo.
Em diversas partes do mundo, outros projetos vêm à tona, indicando uma provável tendência. Em 2008, um inusitado intercâmbio entre quadrinistas da Suíça e da Índia resultou na obra Kulbhushan trifft Stöckli. Já na França, em 2007, a editora Futuropolis publicou um livro em comemoração aos 20 anos da Radio France. Le jour où... reconta em quadrinhos 20 acontecimentos importantes da história da humanidade. Participaram do álbum nomes consagrados do quadrinho mundial. Entre eles, claro, Joe Sacco.
ONDE PUBLICAR?
Os quadrinhos sempre estiveram presentes nos jornais, seja com a publicação de charges e tiras, seja no uso da linguagem em infográficos ou reconstituição de crimes. Só muito recentemente, porém, alguns veículos começaram a abrir outras portas.
Em 2007, o jornal baiano A Tarde publicou uma reportagem em quadrinhos de 30 páginas sobre a história do movimento estudantil na Bahia. Nesse mesmo ano, uma edição da Folha de S. Paulo apresentava uma reportagem de Joe Sacco feita no Iraque. Em 2009, o jornal Correio Braziliense veiculou uma reportagem em quadrinhos sobre o tráfico e o consumo de crack em uma favela de Porto Alegre. Um ano depois, aFolha de S. Paulo enviou um jornalista para cobrir o festival de quadrinhos de Angoulême, na França, e o relato foi feito em quadrinhos. Também em 2010, a revista Caros Amigos publicou uma reportagem em quadrinhos sobre a Bolívia.
A maioria das reportagens feitas até hoje é sobre situações políticas ou conflitos bélicos. São poucas as exceções, como a já citada cobertura do festival de Angoulême. Em 2010, porém, o gênero prestou serviço duas vezes à editoria de esportes. Em outubro, o portal Globo.com publicou uma reportagem em quadrinhos sobre a conquista do tricampeonato mundial de vôlei pela Seleção Brasileira masculina, na Itália. Poucos meses antes, a Continuum, revista de cultura e arte do Itaú Cultural, fez uma edição sobre futebol que continha, entre outras matérias, uma reportagem em quadrinhos sobre o Esporte Clube Juventude, de Caxias do Sul, RS.
Apesar de essa quantidade de publicações indicar uma efervescência do JQ, esses ainda são casos isolados. Muitos jovens candidatos a HQ-repórter só conseguem publicar em veículos experimentais. É o caso da revista Fraude e do Projeto Vanguarda, ambos da Bahia. Em Natal, Rio Grande do Norte, a revista Catorze abre espaço em seu site (www.revistacatorze.com.br) para reportagens desse tipo.
Há quem acredite que a viabilidade do JQ está na criação de veículos segmentados, como o já citado site Cartoon Movement. Outro exemplo é a revista Mamma (www.mamma.am), publicação de um grupo de HQ-repórteres na Itália. Tem também a francesa XXI, que toda edição traz uma reportagem nesse formato.
Mas há quem esteja ousando mais. Em 2009, a empresa japonesa KaBa Net anunciou ser o primeiro site a fazer mangás jornalísticos diários (no www.newsmanga.com, em japonês). E tem também o jornal argentino La Nación, que semanalmente envia o quadrinista Liniers para fazer entrevistas em quadrinhos com personalidades do país.
UM FENÔMENO QUE SE ALASTRA
Se o JQ começa a ser mais praticado e publicado, isso se deve, principalmente, à divulgação. No Brasil e no mundo, surgem eventos para discutir essa nova forma de fazer jornalismo. Em Paris, ocorreu entre dezembro de 2006 e abril de 2007 a exposição BD Reporters (BD é a sigla para a expressão francesa bandes dessinées, ou seja, histórias em quadrinhos). Foram expostos trabalhos de 25 quadrinistas.
Em 2010, na Itália, ocorreu a 6ª edição do Komikazen, festival de quadrinhos baseados na realidade. No mesmo ano, Porto Alegre sediou o I Encontro Internacional de Jornalismo em Quadrinhos, uma parceria do Goethe-Institut com a Feira do Livro da capital gaúcha.
E vem mais por aí. Carlo Gubitosa, membro da revista Mamma, diz: “Estamos, atualmente, organizando um painel sobre JQ dentro de um evento internacional sobre jornalismo, que ocorrerá na cidade de Perugia, na Itália, em abril”.
Essa inserção ocorre também nas universidades. A cada semestre, em todo o Brasil, a maioria das faculdades de Jornalismo conta com pelo menos um estudante de graduação pesquisando sobre o tema em seu trabalho de conclusão de curso. Em maio de 2011, a Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS), em Porto Alegre, oferecerá um curso de extensão sobre como fazer reportagens em quadrinhos. E já existe, na internet, um grupo online de discussão sobre o tema, que tem 70 membros espalhados por todo o país.
Aristides Dutra foi o primeiro a estudar o JQ em nível de Mestrado. Em sua dissertação, defendida em 2003, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Dutra estudou as origens do gênero. No início do século 19, o pintor espanhol Goya já retratava visualmente uma história real com a série de seis quadros intitulada Fray Pedro de Zaldivia y El bandido Maragato. Há também o caso do pintor Constantin Guys, provavelmente o primeiro HQ-repórter, como conta Dutra: “Ele trabalhava para o jornal inglês Illustrated London News como ilustrador e foi enviado como correspondente para cobrir a Guerra da Crimeia (1853-56). Ele produzia desenhos nos próprios locais, durante ou após os eventos importantes, e os enviava a Londres, onde eram então transformados em xilogravuras e impressos no jornal”.
O FUTURO DO JORNALISMO
Engana-se quem pensa que, para trabalhar com JQ, tem de saber desenhar. Basta que o jornalista conheça as vantagens e desvantagens da linguagem, de forma a orientar o trabalho do quadrinista.
Dan Archer diz que uma das virtudes do gênero é “a habilidade de condensar notícias áridas em uma forma visualmente atraente e fácil de compreender”. Ele lista outras vantagens: “Colocar o leitor dentro do personagem, ver os acontecimentos sob sua perspectiva; colocar visualmente lado a lado fatos sobre um mesmo evento, ou mesmo sobre dois períodos distintos; e incorporar elementos como diagramas e gráficos no contexto da narrativa”.
Carlo Gubitosa diz que “uma entrevista misturando texto, imagens e quadrinhos pode levar você mais perto do entrevistado; uma reportagem sobre lugares em que nenhuma câmera consegue ir (como zonas de guerra) pode ganhar uma ‘vida gráfica’ só com a ajuda dos quadrinhos”. Nas palavras de Jens Harder: “Nos desenhos, pode-se combinar informações de fundo extremamente abstratas com alta densidade emocional”.
Trata-se, em verdade, de uma linguagem cuja aplicação no jornalismo ainda está sendo testada, explorada. Como diz Gubitosa: “Nós não temos como imaginar no que o JQ vai se transformar nos próximos cinco anos, e isso é parte de nosso entusiasmo: nós nos sentimos como pioneiros em uma nova fronteira, olhando para o horizonte”.
Será esse então o futuro do jornalismo? Em primeiro lugar, há que entender que fazer quadrinhos é um processo lento, o que torna difícil levar o JQ para as redações de jornal. Archer, no entanto, acredita que “os quadrinhos estão abrindo os olhos das redações para quem quer revigorar as suas formas de oferecer notícias, atraindo, assim, uma audiência mais jovem, e apresentando histórias jornalísticas de um novo ângulo”. Mas como pagar por isso? Citando o caso do Cartoon Movement, Matt Bors sugere que essa pode ser uma conta com resultado positivo: “Neste exato momento, nós somos financiados por alguns investidores e por incentivos públicos, tendo o objetivo de tornar o negócio lucrativo.” E finaliza: “Não diria que é o futuro do jornalismo, mas, sim, uma parte dele, uma parte que está crescendo”.
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